O atabalhoamento da Procuradoria Geral da República (PGR) deixou uma lição para quem acompanha a Operação Lava Jato: é preciso esperar o áudio. Sem isso, impossível avaliar a gravidade da descoberta ou suas consequências.

Lembre o que aconteceu em maio, quando veio à tona que o presidente Michel Temer havia sido gravado dando anuência à compra do silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha pelo empresário Joesley Batista. Parecia o fim do governo. Quando o áudio foi divulgado, viu-se que não era bem assim.

A gravação estava cheia de falhas, com dezenas de interrupções, não havia passado por perícia. O momento em que Temer pronuncia a frase fatídica – “tem que manter isso, viu? – dava margem a dúvida.

De acordo com a perícia apresentada pela defesa de Temer, a frase não se referia a uma mesada para Cunha. Joesley não falava em seguida, segundo os peritos, “todo mês”, mas “tô no meio”. Até hoje a questão é controversa.

O procurador-geral Rodrigo Janot convocou ontem a imprensa para outra acusação bombástica. Afirmou haver, numa gravação acidental entre dois delatores da JBS, o próprio Joesley e o executivo Ricardo Saud, indícios de “crimes gravíssimos” do ex-procurador Marcelo Miller e de um integrante do Supremo Tribunal Federal (STF).

O áudio de quatro horas, feito sem que os envolvidos percebessem, faz parte de um lote entregue à PGR na última quinta-feira, como parte da complementação prevista no acordo de delação. Foi feito em 17 de março, dez dias depois que Joesley gravou Temer à noite, no Palácio Jaburu.

“Em alguns trechos, Ricardo Saud afirma que já estaria ‘ajeitando’ a situação do grupo empresarial J&F com o então procurador da República Marcelo Miller, bem como que Marcelo Miller estaria ‘afinado’ com eles”, diz Janot no despacho encaminhado com o áudio ao ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava jato no STF.

De acordo com Janot, os interlocutores também contam que Miller enviara uma “extensa mensagem” ao delator e advogado da JBS Francisco de Assis e Silva quando foi deflagrada a Operação Carne Fraca, que investigou fraudes em frigoríficos, “tentando justificar a situação”.

“Depreende-se que os interlocutores depositavam esperança de que, por intermédio da pessoa de Marcelo Miller, pudessem obter facilidades junto ao procurador-geral da República, inclusive sugerindo futura sociedade em escritório de advocacia em troca, no processo de celebração dos acordos de colaboração”, diz Janot.

Miller pediu exoneração da procuradoria em 23 de fevereiro, dias antes da gravação de Temer. Mas só deixou o cargo em 5 de abril, logo antes da assinatura do acordo, em 3 de maio. Logo depois, foi trabalhar como sócio no escritório Trench, Rossi e Watanabe, que negociou os acordos da JBS na esfera civil (mas não criminal, como a delação). 

Numa nota emitida no final de junho, a PGR afirmou que MIller “não participou das negociações do acordo de colaboração premiada dos executivos da JBS” e que ele integrou o grupo de trabalho da Lava Jato em Brasília entre maio de 2015 e julho de 2016. A partir de 4 de julho de 2016, diz a nota, voltou a trabalhar no escritório da procuradoria no Rio de Janeiro “atuando junto ao grupo de trabalho somente como membro colaborador”.

Tanto a procuradoria do Distrito Federal quanto a Ordem dos Advogados do Brasil abriram procedimentos para investigar a atuação de Miller. Ele saiu do escritório de advocacia Trench, Rossi e Watanabe um mês depois de começar a trabalhar lá. Afirmou não ter cometido "nenhum ato irregular".

A suspeita é que o novo áudio traga indícios que Miller orientou Joesley e os executivos da JBS a gravar Temer. Se isso ficar comprovado, o acordo de delação poderá ser rescindido, e os benefícios aos sete colaboradores, anulados – entre eles, a imunidade penal concedida aos irmãos Joesley e Wesley Batista, que provocou revolta diante da gravidade dos crimes confessados pelos dois.

O advogado de Temer, Antônio Carlos Mariz de Oliveira, afirmou que poderá pedir a anulação da denúncia elaborada contra o presidente com base nas provas da delação. Mas Janot disse que essas provas não serão anuladas.

A cláusula 19 do acordo afirma textualmente que as provas obtidas continuam válidas “mesmo que rescindido este acordo, salvo se essa rescisão se der por descumprimento desta avença por exclusiva responsabilidade do Ministério Público Federal” (MPF).

Mariz argumentará que, como Miller integrava o MPF quando cometeu os “crimes gravíssimos" atribuídos a ele, todas as provas deverão ser anuladas. É um argumento à primeira vista sedutor. Mas falho, por dois motivos. Primeiro, não deverá ser difícil à PGR mostrar que Miller não atuava no caso. Segundo, as atividades ilícitas atribuídas a um único procurador não podem ser usadas para invalidar o trabalho de toda a instituição.

Do ponto de vista jurídico, portanto, a controvérsia pouco deve mudar na investigação já existente contra Temer, parada no STF até o final do mandato, por determinação da Câmara dos Deputados. Do ponto de vista político, a situação é diversa.

Janor deverá deixar a PGR em dez dias. Todos esperavam uma nova denúncia contra Temer, por organização criminosa e obstrução de Justiça. Mesmo que tivesse chance ínfima de prosperar enquanto ele está no cargo, as acusações causariam estrago. Agora, é o trabalho de Janot e da PGR que mais uma vez entra em xeque. Haverá clima para uma nova denúncia?

A delação da JBS já havia sido fechada de modo açodado. Concedeu aos colaboradores um prêmio além do razoável. Se comprovado que Joesley contou com a orientação de Miller para gravar Temer, Janot sairá do cargo sob clima de vergonha, não de triunfo.

Enquanto não havia sido ouvido, o áudio de Temer garantiu a Janot um breve momento de glória. O novo áudio pode representar uma derrota vexaminosa no final de seu mandato. Primeiro, contudo, será preciso ouvi-lo.




Fonte G1